Intervenção estatal na gestão de bilhetagem do transporte público urbano viário
- Burjack, Nunes & Vasconcelos Advogados
- 4 de jan. de 2018
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Foto: Renato Araújo Fonte: Agência Brasília/Flickr
O documento técnico Sustainable Transport: A sourcebook for Policy-Makers in Developing Cities patrocinado pelo Ministério da Cooperação Econômica e Desenvolvimento do governo alemão apresenta interessantes diretrizes para a correta regulação de mercados de transporte público em cidades que estejam em franco desenvolvimento do seu sistema de transporte público urbano viário.
Na ocasião o pesquisador Richard Meakin desenvolveu o estudo Bus Regulation & Planning, onde estabelece como premissa para a criação de sua proposta teórica a observação do sistema de transporte público de Singapura. Relata que na década de 1970 a cidade-Estado asiática possuía um sistema de transporte público viário dominado por monopólio privado e que o serviço prestado à população era precário. Em 1987 se iniciou um processo de regulação pelo Public Transport Council que culminou com a criação da Transport Link Ltda. mediante investimento comum das empresas Trans-Island Bus Services (TIBS), SMRT Corporation e a SBS Transit.
Esse esforço do capital privado incorporado à Transport Link Ltda. aliado à mínima regulação promovida pela autoridade pública teve como consequência o planejamento integrado das rotas de ônibus e o desenvolvimento de um sistema comum de gerência dos tíquetes (passagens), tecnologias que elevaram Singapura à categoria de cidade (ou cidade-Estado) com sistema de transporte público desenvolvido.
E mais. O transporte público viário em Singapura não possuía subsídios diretos, limitando-se o Estado a custear, como lhe é função natural, os custos de infraestrutura urbana tais como pavimentação de vias, túneis, viadutos etc.
Utilizando-se do caso Singapura, Richard Meakin concluiu que “it is recognised that, to change the status quo, whether it be to restructure an inefficiente loss-making state-owned bus operator or to consolidate and improve a low-quality paratransit service, a degree of considerable political will and institutional capability is needed” (MEAKIN, 2004, p. 38).
E no Brasil? Especificamente no Distrito Federal, como é realizada a regulação do mercado de transporte urbano viário? A Política Nacional de Mobilidade Urbana aliada ao Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do Distrito Federal (PDTU/DF) dão os contornos do Sistema de Transporte Público Coletivo (STPC/DF) regulado pela autarquia Transporte Urbano do Distrito Federal (DFTrans) vinculada à Secretaria de Estado de Mobilidade (ST/DF).
O sistema distrital tem por características a significativa parcela de subsídio estatal mediante tarifa técnica e o financiamento de transporte gratuito a diversos grupos sociais mediante recursos do Fundo do Transporte Público Coletivo do Distrito Federal (FTPC/DF). Também se observa a avocação para a autarquia DFTrans das competências gerências sobre o Sistema de Bilhetagem Automática (SBA), conforme dicção do Decreto nº 32.815/2011, ao contrário do modelo de sustentabilidade proposto por Richard Meakin em que tal tarefa é realizada pelos próprios atores do mercado.
Sob o título de Entidade Gestora do SBA, segundo preceitua o Art. 3º do Decreto nº 38.010/2017, o DFTrans exerce competências incomuns ao Poder Público e tipicamente privadas, naturais ao próprio mercado que recebeu a concessão do serviço público. Dentre tais competências, todas previstas no Art. 8º do Decreto em voga, destacam-se por sua inadequação às finalidades da autarquia distrital: (a) operacionalizar o SBA; (b) recepcionar e processar os dados dos validadores da frota de cada Operador; (c) definir, com base nos relatórios referidos no inciso anterior, a quota-parte da remuneração de todos os Operadores do sistema a ser pago pela Entidade Associativa com recursos originados da comercialização de créditos de viagem; e assim por diante.
Trata-se a gestão do SBA de atividade tipicamente econômica relacionada diretamente ao serviço fornecido pelas concessionárias de transporte público coletivo. Por tal e expressa determinação do Art. 173 c/c Art. 30, inciso V da Constituição da República, a gestão do SBA deve ser apenas excepcionalmente prestada pelo Poder Público sob pena de se caracterizar indevida intervenção do Estado no domínio econômico e, ainda, ofensa ao princípio constitucional-administrativo da eficiência no trato da coisa pública.
São sintomáticas das repercussões sociais e econômicas desse problema de cunho jurídico – o que demonstra a relevância do presente debate – as constantes notícias divulgadas pela impressa local com manchetes tais como “Estudantes denunciam demora no atendimento do DFTrans” ou “Sem resolver pendência no Passe Livre, usuários se revoltam no DFTrans”, e que culminaram com o reconhecimento pela própria Administração Pública da necessidade de mudanças:
“Em 21 de janeiro, o governo apresentou o Comitê Regulamentador do Sistema de Bilhetagem Automática, criado pelo governador Rodrigo Rollemberg (PSB) por meio do Decreto nº 37.067/2016. A ideia é elaborar normas para que as empresas de transporte público de Brasília assumam a operacionalização de todo o sistema dos cartões, mesmo após a mal-sucedida experiência no DF com a Fácil, implementada em 2007, com desvios estimados em R$ 14 milhões que resultaram em operações policiais em 2011.” (AMADOR, 2016).
O insucesso do notoriamente conhecido “caso Fácil” demonstra que a regulação e fiscalização do Estado é essencial e deve ser feita com competência, não servindo tal malsucedido evento como justificativa para a prática das ilicitudes previstas nos Decretos nº 32.815/2011 e 38.010/2017. Estas normas atentam contra a boa gestão e eficiência da Administração e, igualmente, contra a população do Distrito Federal que poderia ter um serviço de transporte público urbano viário de melhor qualidade.
Possível solução jurídica e social ao problema apresentado é observada na cidade de Goiânia, onde desde 1998 o Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de Goiânia (SET), entidade patronal representativa das empresas concessionárias, gere o sistema de bilhetagem automática local de forma exitosa e independente, mediante a regulação e fiscalização do Poder Público.
Por meio do modelo goiano, cuja política se assemelha em parte àquela implementada em Singapura, ganha-se eficiência e se desonera o Estado da responsabilidade e tarefa natural ao mercado, adequando-se assim a intervenção estatal no segmento à exata medida autorizada pelo sistema jurídico brasileiro
Ademar Silva de Vasconcelos Advogado especialista pela UCB-DF Juiz de Direito aposentado Professor universitário
Paulo Henrique Burjack Vieira Advogado especialista pela PUC-MG
Miguel Rodrigues Nunes Neto Advogado especialista pelo IDP Master of Business Administration pela USP Professor universitário
Referências citadas no texto
MEAKIN, Richard. Bus Regulation and Planning. Federal Ministry for Economic Cooperation and Development, 2004. Disponível em: <http://www.sutp.org/files/contents/documents/resources/A_Sourcebook/SB3_Transit-Walking-and-Cycling/GIZ_SUTP_SB3C_Bus-Regulation+Planning_EN.pdf>. Acesso em 03/01/2018.
AMADOR, João Gabriel. GDF quer devolver bilhetagem eletrônica a empresas de ônibus apesar do escândalo descoberto em 2011. Metrópoles, 2016. Disponível em: <https://www.metropoles.com/distrito-federal/transporte-df/cinco-anos-apos-escandalo-gdf-quer-devolver-bilhetagem-eletronica-a-empresas-de-onibus>. Acesso em 04/01/2018.
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